Chutando cachorro morto
Naquela manhã, percebi que eu mesma chutava cachorro morto e, embora dissesse a verdade, era preciso também se compadecer das feridas
Há um tempo, eu decidi dar uma pausa publicar. Em parte por receio de falar sobre coisas nas quais ainda não tenho maturidade intelectual. E em parte devido à minha batalha contra o tempo, o campeão invicto há quase um ano. Mesmo assim, hoje, decidi eternizar aqui mais algumas ruminações. Ontem, passei uma manhã inteira atendendo os responsáveis dos meus alunos na reunião pedagógica. Desse momento, algo me tocou bastante, e foi isso que deu ensejo a estas linhas.
Que a educação está passando por uma crise grave, isso já é de conhecimento geral. E, infelizmente, meus alunos não ficaram de fora desse balaio. As dificuldades cognitivas são grandes, com minguados pontos fora da curva. Os mais hábeis acabam se adequando à mediocridade imposta pela dinâmica escolar. O que, aliás, como professora, tem me feito concluir, na prática, a dificuldade e ineficiência em ministrar aulas para alunos com níveis de aprendizado totalmente diferentes. E assim participamos, todos, desse teatro de títeres: a maioria finge que entendeu, enquanto os professores correm para cumprir o cronograma apertado. No fim, as avaliações gritam em uníssono: tudo tem sido a mais pura farsa teatral.
Na sala dos professores, a incapacidade dos pais para com a educação de seus filhos é um tema de recorrentes diálogos. Alunos com inúmeros problemas referentes à responsabilidade, ao comportamento, ao aprendizado etc. E a pergunta inevitável: “onde estão os pais desses meninos?”.
Em conversa com esses responsáveis, fiz questão de ser franca: a educação só se concretiza quando o indivíduo começa a tomar para si a responsabilidade de conquistá-la. Seria, portanto, necessário que os adultos da situação construíssem essa cultura. Ou seja, em primeiro lugar, eles mesmos tornando-se ávidos em aprender. E, em seguida, impondo horários fixos para que os alunos revisem os conteúdos vistos em sala, sobretudo os que eles não compreenderam. Em outras palavras, para além da obrigação de responder às tarefas do livro mecanicamente, o estudante, com o tempo, aprenderia a pesquisar, a procurar sozinho, a concluir que a educação é um dever dele em primeiro lugar. Com sorte, ele poderá, com o tempo, desenvolver o impulso sincero de conhecer.
O que eu não contava é que esse discurso, por mais verdadeiro e necessário, me fizesse sentir mal ao perceber que a maioria dos ouvintes eram mães. Mães com criança pequena nos braços, meio esbaforidas; mães solteiras, mães com quatro filhos até. De repente, parei de cuspir aquelas palavras tão bem decoradas para, de fato, enxergar aquelas mulheres. E, com espanto e angústia, constatar um certo sofrimento, comunicável de forma silenciosa de uma mãe para outra. Mas que eu, da minha cadeira de juíza, com a sentença pronta não tinha sido capaz de ponderar anteriormente.
Todas, assim como eu, dividiam-se em múltiplas tarefas: trabalho, filhos, limpeza, cuidado com idosos da família, algumas faziam faculdade. Comecei a gaguejar em certos momentos, porque só conseguia me recriminar: “eu vim aqui chutar cachorro morto?”. Eu sabia, até certo ponto, o que elas sentiam. Afinal, eu já lidei com situações nas quais não consegui ser a mãe, a profissional e a estudante que precisava ser. E o resultado disso foi: um forte sentimento de incompetência, além de alguns lapsos irracionais de ressentimento para com a própria maternidade.
E, mesmo assim, eu estava lá para dizer-lhes: “vocês têm falhado e perdido essa luta até agora”.
Esses meninos realmente precisam que as coisas mudem urgentemente. Apesar disso, consegui ficar comovida por essas mulheres. Afinal, eu intuía o que estava se passando dentro delas. O mundo requer que trabalhemos e sejamos boas nisso. Porém, em casa, também é preciso conseguir manter a ordem, levando em conta que um ambiente ordenado é um fator que ajuda no desenvolvimento da criança. E ninguém quer viver dentro de um chiqueiro. Além disso, se a mulher tiver algum envolvimento com o campo intelectual, a manutenção dessa atividade ocorre a duras penas. E, acima de tudo, a principal e mais custosa ação: a presença, o elemento x em todas as relações humanas. É fundamental que participemos de corpo e alma na vida desses pequenos.
O texto não termina com teorias, muito menos soluções, não se preocupe. Também não o penso como um manifesto do ressentimento contra alguns bodes expiatórios.
Quem sabe se esses alunos irão conseguir melhorar? Bem, eu não, mas espero sinceramente que sim.
Mais que isso, desejo que essas famílias consigam consertar essa dinâmica. Por elas mesmas e pela sociedade, porque as relações no mundo têm ruído cada vez mais. Já chegamos a uma normose, ao considerarmos a barbárie algo banal. E não há como não partir da gênese de tudo, a família.
Meu filho dorme neste exato momento. Então, eu deveria estar adiantando algum afazer, porque assim que ele acordar, a realização das atividades domésticas torna-se inviável. É bem provável que meu cronograma sofra um pouco com esse ímpeto de escrever. Aí, certamente, lembrarei de cada uma delas.


Sensível e prudente. Não entendo em tudo a maternidade, mas eu compartilho dessa ideia de culpar-se por falhar. Obrigada por me lembrar que também precisamos olhar pelos olhos dos outros antes de recriminá-los com discursos prontos.